sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

GLOBALIZAÇÃO E CHOQUE CULTURAL - O CASO DOS ATENTADOS AO JORNAL CHARLIE HEBDO.




O atentado aos cartunistas da Revista Charlie Hebdo me deixou deprimida. Mas ao invés de tomar o caminho mais fácil e transformá-los rapidamente em heróis da liberdade de expressão, tentei ir mais a fundo no problema e passei a fazer leituras de artigos que contavam a situação da comunidade mulçumana no país antes dos atentados.

Um artigo me chamou a atenção logo pelo título: "Je ne suis pas Charlie". Fiquei curiosa em saber quais os argumentos utilizados por Plínio Zúnica para fazer oposição aos outros veículos midiáticos e encontrei excelentes explicações que até então não tinha visto. 

Zúnica comenta que muitos mulçumanos que vivem em Paris são contra os grupos extremistas, mas a comunidade é tratada pelos franceses como se todos fossem terroristas. Muitos não conseguem empregos por terem sobrenome de origem árabe, outros apontam que cafés e ambientes públicos rapidamente esvaziam-se após a chegada de mulçumanos trajando túnicas e turbantes.

Na minha vida acadêmica no curso de história, optei pelo viés dos estudos culturalistas e por conta disso fiz leituras que me ajudaram a encarar problemas tão delicados como esse. Um teórico francês chamado Michel de Certeau, publicou no ano de 1980 uma das suas principais obras, intitulada: A invenção do cotidiano. Nesse livro, Certeau inicia falando da mudança de campo da sua pesquisa, agora direcionando suas atenções para o Brasil. (Mas por qual motivo falar do Brasil nessa discussão? Calma...) Esse estudo acontece inicialmente no nordeste, abordando em princípio as questões das disparidades sociais, da ausência do poder do Estado de forma efetiva. O autor destrincha e denuncia o coronelismo, a vida com privações tanto culturais como econômicas do povo sertanejo e vê a expressão da cultura religiosa como válvula de escape para o sofrimento.

Para Certeau, o sertanejo possui um jeito próprio para fugir da opressão. Eles acreditam que existem seres que podem ampará-los em sua realidade miserável, um exemplo disso é a crença forte e milagrosa em Frei Damião. Devido a um estado miserável de vida, não mais reconhecem o poder legítimo do governo estatal. As referências milagrosas agem no imaginário popular e tomam um lugar que deveria ser ocupado pelas ações do governo, principalmente no que se refere a ações ante um flagelo sertanejo. A religião aparece como um instrumento de fuga e obediência.

Os países do Oriente Médio sofreram com o imperialismo europeu. O próprio termo Oriente Médio foi cunhado pelos britânicos para designar uma região que ficava entre o Mar Mediterrâneo e as fronteiras da Índia, então colônia inglesa. Nessa região coexistem as três maiores religiões monoteístas (O Islã, O Judaísmo e o Catolicismo), praticadas por aproximadamente 230 milhões de fiéis. A exploração que ocorreu nesse território pode ter ajudado a fomentar ainda mais a crença exacerbada em um ser superior que ajudasse o homem a aplacar todo o seu sofrimento terreno.

Diferente da reação de resiliência das comunidades católicas localizadas no nordeste do Brasil, esses grupos de mulçumanos que optaram pelo viés extremista da fé, interpretaram no Alcorão uma intervenção de Alá mais direta a partir da Jihad. Dessa forma, ao invés de direcionarem todas as suas frustrações para as orações diárias, esses grupos extremistas organizaram uma verdadeira guerra santa destinada ao ocidente, sobretudo aos países que exerceram dominação mental ao mundo islâmico. 

Sem dúvida interpreto essa reação de grupos como o Estado Islâmico, como desproporcional. A dádiva da vida nos é dada apenas uma vez e ninguém pode ter o direito de romper esse fio que nos anima. Além dos ataques ao jornal Charlie Hebdo, os judeus também acabaram virando alvo por conta da rixa histórica existente no conflito entre Israel e Palestina.

E como fica a questão da liberdade de expressão?

O fato é que nem franceses e nem grupos mulçumanos extremistas estão com a razão. O jornal Charlie Hebdo foi desrespeitoso com a fé dos mulçumanos, utilizando-se de uma crítica ácida ao representante máximo da religião islâmica e não à interpretação errônea de homens sobre os escritos do profeta. Por outro lado não podemos fechar os olhos para a profunda dominação que os líderes religiosos exercem. As mulheres são o alvo maior dessa cultura, que as limitam em vários aspectos do cotidiano (estudos, vestimentas, sexo).




Como historiadora, odeio fazer previsões, mas fica claro que na França ocorrerá um aumento do discurso xenofóbico, do crescimento dos partidos de extrema direita e fechamento do país para a entrada de estrangeiros. Os grupos terroristas também não darão trégua e dificilmente alguns atentados serão impedidos pelo serviço de inteligência dos países europeus.

O mundo cada vez mais globalizado resulta num contato maior entre as diferentes culturas e a possibilidade é inerente de ocorrer um estranhamento entre formas de viver tão diversas. A mídia só atrapalha nesse sentido ao dar mais crédito à notícias como o atentado ao jornal Charlie Hebdo e ignorar os 2 mil mortos no atentado que ocorreu na Nigéria no mesmo período também envolvendo radicais islâmicos.

As mudanças mentais na forma como os mulçumanos concebem a sua religião, devem ocorrer de dentro para fora e não de maneira inversa. A História nos mostra que toda a tentativa que ocorreu de modificação brusca da cultura do outro, resultou em guerras e ascensão de regimes autoritários. 

Dessa forma, ao invés de utilizarmos a caneta como uma arma de preconceitos culturais, como ocorreu com os chargistas da revista Charlie Hebdo, no caso da religião mulçumana e de outros casos envolvendo racismo, devemos usá-la para repensarmos os limites da liberdade de expressão.








 

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