sexta-feira, 25 de abril de 2014

CRÍTICA DO ESPETÁCULO - É PROIBIDO PROIBIR



Hoje tive a oportunidade de assistir ao espetáculo É proibido proibir, do ator e dramaturgo Ricardo Guilherme. A peça faz uma retrospectiva dos 50 anos de ditadura militar no Brasil e chama o público para repensar o futuro do pais. 

É proibido proibir é um título muito emblemático, tendo em vista que foi retirado de uma das músicas do cantor e compositor Caetano Veloso, que sofreu com as vaias do público ao cantá-la na final paulista do FIC. Revoltando com a atitude da platéia ele gritou: "Vocês não entendem nada!". De uma forma irônica e irreverente Ricardo Guilherme escolhe o título para fazer menção as contradições da classe média, que tem o poder para mudar o Brasil, mas mostra-se confusa, despreparada ou descompromissada.



Com o auxílio do multi-instrumentista Rami Freitas, o ator tece um monólogo acompanhado por imagens. Tudo começa no dia 31 de março de 1964, quando Castelo Branco com o apoio da CIA, arquiteta o plano de tirar Jango do poder com a desculpa de que o país estava sofrendo uma ameaça comunista. Nada mais conveniente, visto que os capitalistas norte-americanos preocupavam-se em manter o controle do Brasil, num momento em que o comunismo na União Soviética parecia expandir-se no mundo. No dia 01 desse mesmo ano é declarado o Golpe e Castelo Branco assume o poder. Enquanto Jango é exilado, boa parte da sociedade civil apoia o Golpe com a Marcha de Deus com a Família e comemora com uma chuva de papéis picados a Ditadura. 

Castelo Branco já começa instaurando os quatro primeiros atos institucionais, fechando associações civis, proibindo greves, intervendo em sindicatos e cassando mandatos políticos. No seu discurso a ditadura deveria ser passageira, mas na prática tudo foi condicionando para que ela fosse duradoura. 




Nesse primeiro momento boa parte da juventude não agradou-se com a situação, porém não mostrou nenhuma medida efetiva para mudá-la. A omissão de muitos inverteu a ordem natural da vida. Os pais começaram a enterrar os seus filhos com o endurecimento do regime no Governo Costa e Silva. A instauração do Ato Institucional nº 5 proibiu manifestações, a liberdade foi vigiada e a censura alcançou todos os setores de telecomunicações. Artistas como Caetano, Geraldo Vandré, Gil e Chico Buarque foram exilados e simpatizantes da esquerda foram presos e torturados. No entanto, boa parte da juventude estava mais interessada em fazer a revolução comprando um belo jeans ou pichando as ruas com mensagens de protesto. 



O maio de 68 ocorrido em Paris, proporcionou no Brasil "revoluções" paralelas e outras formas de resistência à ditadura instaurada. As transgressões da juventude envolviam mudanças comportamentais como o grito das feministas contra o pudor instaurado por seus pais e a liberdade sexual proporcionada pelo aparecimento do contraceptivo. Rita Lee cantou o momento: "Toda mulher é meio Leila Diniz". Um ano depois o desejo por liberdade fundado pelo Woodstock fez com que muitos jovens sonhassem ao lado do seu violão, experimentado muitas drogas, fazendo sexo livre e ouvindo rock' roll. 





A censura não cessou e chegou finalmente aos palcos. Certos diálogos em peças teatrais foram cortados e os que insistiam em alguns conteúdos acabavam sofrendo represarias. Os atores da peça Roda Viva foram alvos dessa violência em uma das apresentações. No entanto, algumas vezes esses geniais artistas conseguiam burlar a censura. 





Na música de protesto também existiram mensagens nas entrelinhas. Chico Buarque fez isso em Cálice, Gil em Divino Maravilhoso, Caetano em Alegria-Alegria, Elis Regina em interpretação de O Bêbado e o Equilibrista e Geraldo Vandré em Para não dizer que não falei de flores, considerado o hino contra a ditadura militar. 










Nas universidades as aulas eram vigiadas. Professores sofreram aposentadorias compulsórias, alunos desapareciam e os informantes ameaçavam e entregavam qualquer pessoa que fizesse um comentário a favor da esquerda ou tivesse de posse de alguma "literatura subversiva". 





De 1968 em diante foi o período que mais civis desapareceram. O filho de Zuzu Angel foi barbaramente torturado e morto nos porões da ditadura. O estudante Edson Luís morreu nas mãos de policiais militares em um dos protestos. O cearense Frei Tito foi mais uma vítima, cometendo o suicídio após ter o seu corpo e espírito agredidos. Segundo relatos dos sobreviventes, as marcas psicológicas nunca serão apagadas. Muitas vítimas até hoje são dadas como desaparecidas. 




Todo esse cenário causou pânico na classe média e muitas pessoas foram para as ruas. No entanto, muitos voltaram aos braços de Morfeu por causa da Copa na década de 1970. Enquanto todos cantavam:  "Todos juntos, vamos, pra frente Brasil, salve a seleção", Médici regojizava-se. 



Finalmente o "milagre econômico" parece ter fim no governo Geisel e o colapso ocorre no governo Figueiredo. As ruas pedem "Diretas Já". Nesse momento Tancredo Neves tenta assumir o poder, mas sua saúde piora e o vice ocupa o seu lugar. José Sarney é mais uma continuidade do que uma ruptura. Não foi diferente com os governos seguintes de Fernando Collor e FHC, apesar da democracia já ter sido instaurada.   



Para Ricardo Guilherme tudo começa a mudar quando o sindicalista e metalúrgico Luís Inácio da Silva, mas conhecido como Lula, assume o poder. A distribuição de renda aumentou e o país conseguiu pagar a sua dívida externa nos oito anos de mandato. 




Em seguida Dilma assume e imortaliza-se como a primeira mulher presidenta do Brasil. Dilma tenta dar continuidade ao trabalho de Lula. Para o militante Ricardo Guilherme, as manifestações só ocorreram porque a população chegou a um nível de consciência maior. 





O espetáculo termina com Ricardo Guilherme recitando Geraldo Vandré e em seguida chamando o público para a luta: "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer... 20:30 do dia 24 de abril de 2014, hoje é o dia de fazer uma revolução". 





As minhas impressões sobre a peça foram as melhores. No entanto, a minha vivência como historiadora não me permite ser tão otimista em relação ao futuro do país. Assim como antes, a nossa classe média ainda está cheia de dúvidas (e eu estou me incluindo aqui). Sem dúvida o Brasil cresceu socialmente, mas a vozes das ruas não foram ouvidas como o desejado. Voto na esquerda desde que me entendo por gente, mas tenho todo direito de ter uma série de ressalvas quanto ao governo Lula e Dilma. A nossa presidente prometeu investir pesado na educação, mas até o momento não vejo investimentos sólidos e mudanças substanciais. 

Aponto todos esses problemas governamentais, mas não vejo salvação em outros partidos. Continuo votando em Dilma, mas sei que o PT mudou ao longo do tempo para conseguir conquistar o poder e teve que fazer alianças indesejadas para continuar lá até hoje. Mudanças só acontecerão se esses mesmos manifestantes que foram as ruas acompanharem os processos políticos cotidianamente e não apenas no momento das eleições. Precisamos fazer uma reforma urgente no poder executivo, legislativo e judiciário, pois o presidente está longe de governar o país sozinho. 


Penso como o historiador Edward Thompson, que analisa a história como um túnel por onde corre um trem expresso rumo a uma planície ensolarada, e no qual vivem gerações de passageiros que nascem e morrem sem ver a luz do sol. Sei que estou no meio da estrada e não vou ter acesso as grandes transformações nas mentalidades do povo brasileiro, mas contento-me em fazer parte desse processo de mudanças.


Luiza Rios

Doutoranda em História pela UFPE.  







    





  



  






terça-feira, 8 de abril de 2014

A MÚSICA DO CEARÁ
PROGRAMA A INVENÇÃO DO CEARÁ

A Invenção do Ceará é um programa produzido pela TV O POVO. No Capítulo "A Música do Ceará", o programa reuniu uma série de pesquisadores sobre o tema, revisitando a História da Música Cearense desde o fim do século XIX até os dias atuais. 

PARTE 1


PARTE 2


PARTE 3


ANÁLISE DA SÉRIE BREAKING BAD - COM SPOILERS

De Walter White a Heisenberg



Breaking Bad é uma série norte-americana criada e produzida por Vince Gillingan. Ela começou a ser exibida nos Estados Unidos em 2008 e teve o seu último capítulo em 2013. Ao todo são cinco incríveis temporadas que tratam sobre o envolvimento da dupla Walter White e Jesse Pinkman na produção e comercialização de metanfetaminas. 

Vince Gillingan foi extremamente genial na criação dos personagens. Eles não nascem acabados, pois na verdade eles vão criando novas nuances na personalidade no decorrer da drama. E o mais interessante é que isso não ocorre apenas com os personagens principais, mas com todos os envolvidos: Skyler (a esposa de White), Marie (a irmã de Skyler), Hank (o marido de Marie e detetive que investiga o tráfico de metanfetamina), Water White Júnior (o filho mais velho de White), Saul (Advogado da dupla) e Gus Fring (o grande traficante de metanfetamina da trama). 

O dilema central da trama gira em torno do câncer de pulmão de Walter White, um professor muito mal pago de Química da rede de ensino básico. Segundo os médicos, White teria adquirido esse câncer pela falta de cuidados no uso de equipamentos específicos quando manejava certas substâncias tóxicas em laboratório. 

Logo no início da trama, White já nos é apresentado como um profissional frustrado e fracassado, que obteve um diploma de doutorado na área de Química, mas por vários motivos éticos dos colegas de profissão, não conseguiu manter-se como sócio-prioritário de uma empresa que foi criada por eles e acabou sendo passado pra trás.  

Nos primeiros capítulos da trama, White mostra-se como um "bom homem de família", atencioso com os problemas da casa, da mulher e dos filhos. Apesar de não gostar do seu trabalho, acaba não reclamando tanto, pois sabe que é a única maneira digna de tirar o sustento de sua prole. Todo esse cenário é drasticamente modificado quando White e sua família descobre o câncer. O plano de saúde não cobre o tratamento e ele acaba não tendo de onde tirar esse dinheiro. Sua esposa Skyler, compadecida com a doença de White, pede ajuda aos ex-sócios do companheiro, mas deixa a situação mais complicada, porque ele agora sente-se não só doente, mas humilhado.

White recusa a oferta do casal e é nesse momento que Jesse Pinkman cruza a sua vida. Jesse é um ex-aluno de White, que usa e trafica drogas. Não menos fracassado, tenta de todas as maneiras ganhar dinheiro fácil, pois percebe que para ter um emprego formal é necessário formação e uma "boa aparência", coisas que ele não tinha. Jesse acaba apresentando a forma de produzir metanfetamina para White e o mesmo percebe que pode fazer um produto melhor com os seus conhecimentos sobre Química. 

De fato os dois tiveram êxito na fabricação da metanfetamina. Quem experimentou percebeu que o produto era de qualidade, mas ambos não perceberam que ainda tinham um grande problema nas mãos, que era o de vender toda essa quantidade da droga. 

No começo o seu público alvo era de dependentes químicos. O trabalho do tráfico para iniciantes não era nada fácil, tendo em vista que repartindo o produto e vendendo em baixa escala era de pouca rentabilidade. Foi ai que White e Jesse tentaram ampliar os seus horizontes, buscando vender a mercadoria para um grande traficante da área.

A ideia não foi nada boa, pois Tuco era um homem violento e marcado por doenças mentais devido ao uso excessivo de drogas. A primeira transformação de White ocorre no capítulo em que ele produz uma fórmula química para acabar com Tuco, que não quis pagar pela mercadoria traficada. 

White logo se dá conta que "não se pode fazer omeletes sem quebrar os ovos" e a partir daí ele vira o Heisenberg. A violência e esperteza tornam-se ingredientes indispensáveis para manter a sobrevivência dele e de Jesse. 

Com o passar do tempo, a droga da dupla vira um sucesso e Heisenberg e Jesse percebem que no sistema capitalista o dinheiro é algo fundamental. Enquanto o primeiro consegue pagar o seu tratamento, o segundo consegue fazer a compra da casa que a mãe em capítulos anteriores tinha tomado por ter descoberto que ele usava drogas.

Em cada capítulo que se passa o universo da produção e da comercialização de metanfetaminas vai ficando cada vez mais abrangente. O ápice disso ocorre quando White conhece Gus, um dos maiores traficantes do produto nos Estados Unidos. Gus é um americano naturalizado que conseguiu ganhar a vida no mundo das drogas por causa de seu profundo equilíbrio e inteligência. Ele possuía várias táticas para não ser descoberto. Trabalhava todos os dias como um cidadão comum, não tinha grandes bens e mantinha contato constante com a Polícia Federal, fazendo grandes doações para a instituição. 

No entanto, desde o início Gus entra em confronto com a dupla por não gostar de Jesse, pois percebia que o jeito explosivo do garoto poderia destruir todo o seu "reinado", cultivado com muito esforço por anos a fio. Gus concordou em fazer negócios com White por perceber que ele era um homem acima de qualquer suspeita, mas a única ressalva era tirar Pinkman da jogada. 

White não era mais aquele homem bobo e despreparado que conhecemos nos capítulos anteriores e por esse motivo nunca caiu nos joguinhos de Gus. O traficante o admirava, mas não percebia que White era uma "força incontrolável da natureza", que o destronaria logo, logo. 

No entanto, não foi fácil para White nem para Jesse destruir Gus, pois ele tinha muitas pessoas que o protegiam. Era necessária a mente brilhante de White para criar o momento perfeito. Enquanto isso, Hank, o agente da Polícia Federal e seu cunhado, estava muito próximo de descobrir a verdadeira identidade de White. 

Nos capítulos seguintes, White arma um plano para matar Gus e consegue êxito a duras penas. Gus é um personagem que acaba deixando saudades, pois era muito marcante e não foi construído de maneira maniqueísta. Gus teve um passado tão nebuloso como o de White e teve que mantê-lo muito escondido. Em um flash do passado de Gus, acabamos por descobrir o seu homossexualismo e a morte do seu companheiro por um grande traficante. Em um mundo das fronteiras com o México, esse tipo de parceria não era tolerada. No entanto, Gus sabia tirar proveito dos momentos difíceis. A sua história o tornaria um homem frio e calculista. 

Gus morre, mas uma cisão entre White e Jesse ocorre. Com o passar do tempo Jesse percebe que White não é mais aquele professor frágil e fracassado. Jesse também não é mais aquele rapaz bobo e ingênuo. No passar da trama ele virou um homem e percebe com as experiências no mundo do tráfico de drogas que não pode confiar plenamente em ninguém. 

White de fato não era mais White, ele agora era o próprio Heisenberg, seu auterego. Todas as experiências no mundo do tráfico mexeram com ele. Ao matar a primeira namorada de Jesse, que era envolvida com drogas pesadas , e envenenar o filho da sua segunda namorada para que Jesse pensasse ter sido Gus, White tinha plena convicção que fez a coisa certa. Para ele, "os fins justificariam os meios". A célebre frase de Maquiavel na obra O Príncipe, é tomada por White ao pé da letra e muitas outras atrocidades são feitas para que ele consiga manter o seu plano e consequentemente a saúde mental de Jesse e o bem estar da sua família.     

O público realmente passa toda a série sem saber se ama ou odeia White e talvez por isso a obra seja de um alto nível de genialidade e complexidade. Os sentimentos para com esse personagem tornam-se cada vez mais contraditórios, pois ao mesmo tempo que sabemos que White está fazendo muitas vezes a escolha errada, não conseguimos desapegar do personagem em questão. 

White enfim é descoberto. Seu cunhado não acredita que a verdade estava na sua cara por tanto tempo. Para Hank e sua esposa tudo é muito revoltante e eles não conseguem lidar com o problema, sobretudo quando percebem que Skyler também está de alguma forma envolvida. O filho de White também acaba descobrindo a verdade e não consegue recuperar-se até o final da trama desse choque. Em sua mente, tudo o que ele pensava sobre o pai era uma mentira. 

White está completamente envolvido com o tráfico e não consegue dizer para Hank que vai sair. Na verdade White orgulhava-se do legado deixado por Heisenberg. Afinal de contas, até onde esse dinheiro era sujo, tendo em vista que foi através dele que conseguiu estabilizar o câncer e dar maior dignidade a sua família?

Todo o envolvimento de Skyler no problema fez com que o casamento se desgastasse. No entanto, alguma ligação existia entre os dois até o final da trama. Essa ligação quase foi rompida quando Hank morreu. Apesar de White imaginar que os fins justificam os meios, ele não achava nada digno que os traficantes acabassem com a vida do seu cunhado. 

Mas de fato isso aconteceu e foi um momento chave na trama. Realmente tudo o que White tinha foi destruído. A sua família o relegou nesse momento por completo. White finalmente descobriu que o dinheiro do tráfico "desmanchava-se rapidamente no ar". Quase tudo o que ele tinha foi roubado e White ficou apenas com um dos "barris" de dinheiro. 

Antes de fugir, White encontra-se uma última vez com a esposa e foi ai que um dos melhores diálogos de todos os tempos foi produzido. White finalmente disse que tinha feito tudo aquilo porque gostava do poder e não necessariamente por causa do amor a família e o medo da doença. Seus fãs ficaram completamente desnorteados, pois tinham comprado desde o início da trama o seu discurso. 

De fato White foi uma das melhores construções de personagens já feita em todos os tempos. As pessoas sentiam-se enganadas por ele, mas estranhamente ainda estavam ligadas sentimentalmente. Confesso que nem nos maiores clássicos da literatura, tinha visto uma reviravolta dessas. 

Em paralelo a essa história, Jesse estava preso por um grupo de traficantes para produzir metanfetaminas, tendo em vista que nesse momento Pinkman era quase tão bom no processo de fabricação como Heisenberg.

Jesse amadureceu ainda mais nessa prisão, repensou a sua vida e viu que só nós podemos dar sentido a ela. White estava completamente acabado, mas talvez em uma luta interna com a sua ética, fez do seu último ato uma nova chance para Jesse acertar e aproveitar o resto da sua vida com mais sabedoria. 

White então vai para o campo de batalha preparado com a sua grande inteligência. Acabou matando todos os seus inimigos com uma outra de suas invenções improvisadas. Jesse salva-se, mas White é atingido por vários tiros. O seu final é emblemático e inesquecível. A Polícia Federal finalmente chega no lugar e encontra o grande Heisenber morto ao som do clássico "Baby Blue", fazendo alusão ao seu grande legado de metanfetaminas. 

De fato a série pode ser vista como umas das mais bem produzidas de todo o século. Ela é um verdadeiro compêndio acerca da moral na pós-modernidade. A genialidade do seu criador pode ser comparada a de Dostoiévski, que escreveu Crime e Castigo e a de Francis Ford Coppola, que deu vida a Don Vito Corleone em O Poderoso Chefão.    


   







segunda-feira, 7 de abril de 2014

Crítica - Noé. 



Assisti Noé no dia da sua estréia nas novas salas de cinema do North Shopping Jóquei de Fortaleza. Essas salas são super confortáveis, pois possuem poltronas reclináveis e a tela é projetada com a melhor tecnologia 3D do mercado. Notei realmente a diferença e acredito que isso tenha até contribuído para eu ter gostado tanto da qualidade técnica do filme. Fui ao cinema meio descrente dessa qualidade, pois um dia antes li uma crítica muito bem escrita de um dos jornalistas da Folha.

Thales de Menezes aponta que Aronofsky poderia ter aproveitado mais dos recursos técnicos, sobretudo do 3D. "A arca era apenas um caixote e os bichos gráficos aparecem em cenas curtas".

Eu já discordo, tendo em vista que o uso das imagens foi muito bem explorado, sobretudo nas visões de Russel Crowe do dilúvio. Gosto como Aronofsky faz o jogo com as imagens, relacionando a catástrofe com a história de Adão e Eva. 

No entanto, não discordo completamente da crítica de Thales, pois também esperava mais do roteiro, tendo em vista que Aronofsky já tinha feito dois excelentes filmes: O Lutador e Cisne Negro. Desde o início sabia que o longa era levemente inspirado na Bíblia, pois Aronofsky preferiu criar os próprios dilemas dos personagens. Porém, o mesmo o fez de maneira simplista e maniqueísta. 

Os Filhos de Caim, por exemplo, foram representados como a origem de todo o mal e por isso Noé precisava decidir o futuro da humanidade quando Deus mandasse o Dilúvio para "lavar" a crueldade da terra. Aronofsky ainda ensaiou um bom dilema com Tubalcaim, quando em um dos diálogos o personagem diz que o homem é fruto da Vontade. No entanto, Tubalcaim foi reduzido a figura de um homem egoísta, louco pelo poder e afeito a carnificina.   

Acreditei que Aronofsky faria com Tubalcaim, algo semelhante que Saramago fez com Caim em sua trama. Nessa obra, Saramago aponta que Deus acabou criando uma rixa entre os dois irmãos quando exaltou a obra de um e menosprezou a de outro. A humanidade teria nascido fruto desse dilema. O próprio Jesus Cristo recebeu uma outra "roupagem", mais humana em sua obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que acabou dando a Saramago inúmeros prêmios e o desafeto de muitos cristãos.  


Talvez Aronosfsky tenha mesmo acertado na construção do personagem de Noé, que acaba tendo em suas próprias mãos o futuro da humanidade e também do seu filho Ham, que sofreu muito para entender as escolhas do pai. 

Só fiquei meio em dúvida com as escolhas feitas pelo diretor em relação a criação dos personagens dos Anjos Caídos. Ele poderia ter explorado melhor esse grande dilema criado, mas freou no meio do caminho. Aronofsky tinha vários bons exemplos de como fazer isso. Fico pensando se o mesmo leu o Paraíso Perdido. 

Por mais que eu tenha críticas sobre o filme, não gostei das colocações que tenho visto de evangélicos ortodoxos. O diretor em questão em nenhum momento disse que criaria a risca o universo bíblico em seu longa. Ele deu toda uma licença poética a obra, tornando-a, inclusive, mais convidativa. 

Alguns gostam de comparar o filme Noé com O Senhor dos Anéis ou Game of Thrones, mas já acho exagero, tendo em vista que o mundo criado por esses escritores é cheio de metáforas inteligentíssimas, coisa que não aconteceu com maior evidência na obra de Aronofsky. 


domingo, 6 de abril de 2014

O POVO - 01/12/2012

Volteios da história

Uma confusão de datas ronda a história do Conservatório Alberto Nepomuceno, referência no ensino de música no Estado do Ceará. Pesquisadora defende que a instituição teria sido fundada quase duas décadas antes da data oficial.

Foto do dia da Inauguração em 1919.

Foto atual do Conservatório

Antes mesmo de adentrarmos o prédio, uma grande placa branca com dizeres em azul deixa claro ao passante: “Tradição e modernidade no ensino da música. Fundado em 1938”. Acomodado em meio ao caos visual e sonoro formado por edificações, veículos e pessoas que transitam ao longo da Avenida da Universidade, parte do “corredor cultural” do Benfica, o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno é uma das principais referências no ensino de música no Estado do Ceará.

Reverenciando a memória de um dos nomes mais importantes da música brasileira - cearense de nascença, mas internacional de andanças -, a instituição oferece cursos de canto, piano, violão, violino, bateria, entre outros instrumentos, para públicos das mais diferentes idades e graus de iniciação.

No entanto, apesar da “informação pública” que dá conta de sua fundação em 26 de maio de 1938 – normalmente creditada aos esforços de Paurillo Barroso por meio da Sociedade de Cultura Artística -, a história do Conservatório Alberto Nepomuceno guarda “raízes” que podem vir bem antes do que é usualmente conhecido pela maioria dos cearenses. Com um detalhe a se destacar: a diferença entre datas soma quase duas décadas. É o que afirma a historiadora Luiza Rios, que aponta o ano de 1919 como marco de “origem” do CMAN enquanto projeto. O nome do espaço, no entanto, era outro naquela época - apesar de notavelmente semelhante ao atual.

Pesquisa

A afirmação da historiadora é fruto de sua dissertação defendida recentemente no Mestrado Acadêmico em História e Culturas da Uece intitulada Entre o Piano e o Violão: A Modinha e a Cultura Popular em Fortaleza, trabalho com o qual realiza uma análise social da música cearense no fim do século XIX e início do século XX, entre 1888 e 1920. Durante a pesquisa, ao investigar os “lugares da música” no Ceará, Luiza se deparou com documentos que registravam a presença de uma “Escola de Música Alberto Nepomuceno”, fundada pelo maestro cearense Henrique Jorge em 1919. A partir dali os pontos foram sendo ligados.

“Na ocasião pensei: não pode ser o mesmo estabelecimento. Mas ambos tiveram em comum até o espaço no início, na rua Barão do Rio Branco, 520. Analisando um jornal de 1919 [Correio do Ceará], vi que estava sendo aberto essa escola na rua. Em outro jornal [O POVO], de 1938, vi que estava sendo reaberto um conservatório no mesmo prédio”, afirmou a historiadora. “Assim como o Alberto Nepomuceno, o Henrique Jorge estudou em Recife e viveu todo aquele universo musical enriquecido. Ele inclusive fundou seu primeiro conservatório por lá. Com a experiência - e de volta a Fortaleza -, ele resolveu fundar algo do gênero por aqui. Vendo no Alberto Nepomuceno a figura principal do movimento nacionalista para a música, veio a homenagem”, completou.

Mas como viria a ligação entre os dois projetos de ensino? “Em 1928, o Henrique Jorge desapareceu e foi dado como morto. A escola começou a decair. Quando o compositor de renome Paurillo Barroso viu como estava a situação do ensino de música por aqui, tomou a frente e decidiu reinaugurar o espaço dez anos depois, colocando três grandes pianistas na direção: Ester Salgado da Fonseca, Branca Rangel e Nadir Parente”, afirma Luiza Rios.

“Acredito que essa ‘confusão de datas’ tenha acontecido pelo fato de Henrique Jorge só ser reconhecido como sujeito histórico a partir do momento em que seu filho, Paulo Sarasate, foi governador do Estado (1955-1958). O conjunto habitacional que levou o seu nome foi inaugurado também nessa década, quando o filho já havia entrado na vida política. Paurilo Barroso reinaugurou o conservatório em 1938 e nesse período ele já era um grande nome na música erudita cearense. Foi autor da obra A valsa proibida, que ficou conhecida em todo o Brasil”, afirmou a pesquisadora.


Cronologia

Procurada pela reportagem, a diretora do CMAN, Mirian Carlos, afirmou saber da história que envolve a Escola criada por Henrique Jorge, apesar de não ser “amplamente conhecida”. “A cronologia adotada, no entanto, vem a partir da fundação do Conservatório em si, em 1938, a partir do projeto de reestruturação idealizado pelo Paurillo e orientado pelas três diretoras”, afirmou por telefone.

Já no caso da professora titular aposentada do curso de música da UECE, ex-aluna e ex-professora do Conservatório (1961), Elba Braga Ramalho, a informação apresentada pela dissertação foi completa novidade. “Essa provocação é interessante. Para mim foi surpresa, já que sempre tive contato com a história de 1938”, afirmou.

No entanto, Elba fez ressalvas à ideia de uma “continuidade” entre os dois projetos, ao ser perguntada sobre o que diferenciaria uma “escola” de um “conservatório” na teoria. “A própria pergunta pode ajudar a elucidar esse ponto. O conservatório vem de uma tradição europeia, principalmente francesa [conservatoire]. O Henrique Jorge criou a Escola, deu o nome do Alberto Nepomuceno, mas isso não exatamente quer dizer que os projetos sejam os mesmos. As professoras Ester Salgado e Nadir Parente, por exemplo, formaram-se musicistas a partir do modelo de conservatório europeu e trouxeram essa ideia de escola para cá. Perceba que isso é uma análise de improviso, mas a informação aponta para dois projetos distintos”, completou a professora, que conheceu a pesquisa em uma mesa redonda, a convite do curso de Música da UECE.

Saiba mais

“Aos quinze dias do mês de julho de 1919 às 19h30 no Edifício do Clube Iracema, à Rua Barão do Rio Branco, 520, presentes o Exmo. Sr. Dr. Thomé de Saboia digníssimo presidente do Estado, o Exmo. Sr. D. Manoel, Arcebispo Metropolitano de Fortaleza, autoridades civis e militares representantes da imprensa, pessoas gradas e distintíssimas famílias, à convite do maestro e diretor da Escola de Música Alberto Nepomuceno, Henrique Jorge...”, dizia a ata do dia da inauguração da Escola, veiculada em 1958 pelo jornal O Unitário, em uma retrospectiva sobre o conservatório.
O POVO - 02/03/2014

Qual Carnaval faz sua cabeça?

O POVO faz um resgate histórico da invencionice de se fantasiar. Antes da quaresma, a rua convida os foliões a um sedutor jogo de esconde e revel.

Foto: Chico Gomes

Quem é você neste Carnaval? Cabe aqui qualquer resposta. Estamos nos dias que antecedem a quaresma e por tradição histórica é época de se deleitar com os prazeres da carne. É Carnaval no Brasil e para incentivar a exaltação da festa mais esperada do ano, você pode, ou deve, se fantasiar. Sair às ruas, que tentadoramente convocam a todos sem critérios de classificação social ou racial, e experimentar a festa que rompe com o cotidiano. Se você ainda está com uma resposta comportada, pronta para a primeira pergunta, desconstrua-se. Hoje é permitido. Aliás, desde o século XIX. “As principais fantasias dos velhos carnavais brasileiros são as de Pierrot, Arlequim e Colombina, originárias de um estilo teatral conhecido como commedia dell’arte, que surgiu na Itália do século XVI”, explica Luiza Rios, doutoranda em História pela UFPE. Desde os primeiros Carnavais cearenses a molecagem e a vontade de se reinventar encontrou refúgio nos papangus. “Eram foliões que se vestiamde camisolões ou dominós e usavam máscaras na tentativa de esconderem a identidade para aproveitarem com mais liberdade as festas”, diz Luiza.


É comum encontrar nas descrições da festa momina que a graça da máscara foi a de inverter os papéis. É quando saíam às ruas escravizados vestidos de senhores e ricos vestidos de pobres. Desde o teatro grego foi assim, quando mulheres eram proibidas de atuar e os homens usavam máscaras para interpretar personagens femininos. O carnavalesco cearense Dilson Pinheiro, desde 1978 arrasta sandália em carnavais, conta que a mais legítima fantasia é a mais engraçada. “A fantasia fácil, que você encontra em todo canto é o homem fantasiado de mulher. Todo mundo tem algo em casa que pode virar essa fantasia. É caricata e o homem fica ridículo e bizarro”. A essência do principal jogo de Carnaval é universal. “As máscaras e fantasias marcavam a fuga do cotidiano. As transgressões eram toleradas e as distancias sociais diminuíam”, explica Luiza.


A fantasia é em si o figurino, como que um traje necessário – para não dizer obrigatório - do Carnaval. O diretor do bloco Unidos da Cachorra incentiva os foliões já no Pré-Carnaval a se enfeitar. “Convidamos o público a colorir a Praia de Iracema. A fantasia é a alegria da festa, uma maneira de ocupar o espaço público”. Dilson ensina: “A roupa é a extensão de sua alegria. Se você está triste, não vai nem pro Carnaval. E se colocar uma roupa colorida, mostra que está compactuando com aquela festa”.


Assim, as diferentes personas sociais assumem identidades múltiplas, outrora escondidas. “Atualmente o desejo de trajar uma fantasia carnavalesca é misto de exibicionismo e tentativa de libertação”, analisa Luiza. E assim segue a folia, numa cadência de esconder-se atrás das máscaras e revelar-se a si mesmo.



1 A ELITE

“A elite fortalezense desfilava fantasias luxuosas nos clubes como o Iracema e o Cearense. A maioria encomendava essas fantasias nas casas especializadas em produtos importados”, ensina Luiza Rios.


2 A MODA

Hoje a elite recorre a grifes para construir sereias, baianas e índias. A rua mesmo, enche-se de havaianas e melindrosas. Frida Kahlo está na moda e as coroas de flores na cabeça devem ser o traje recorrente de quem ouve Lana Del Rey e samba ao som de Novos Baianos.


3 A OUSADIA


As coca-colas usavam fantasias bem ousadas. A maioria desfilava com saias curtas e blusas decotadas. Por esse motivo eram alvos fáceis do olhar moralizador da Igreja e das famílias mais conservadoras.
O POVO - 21/01/2014

Um gênero boêmio e democrático

A pesquisadora Ana Luiza Rios defende o caráter democrático da modinha na Fortaleza do século XIX.




O surgimento de uma cena musical em Fortaleza ocorreu em paralelo ao processo de urbanização da cidade. A nova ordem que apareceu com a remodelação do espaço urbano, no fim do século XIX e início do XX, gerou maior distanciamento entre os diferentes extratos sociais. Enquanto as elites econômicas e intelectuais isolavam-se nas festas dos clubes e palacetes, os mais pobres faziam seus “batuques de viola” nas zonas periféricas.


Gêneros musicais provenientes da Europa (valsa, a polca, o schottisch e a quadrilha) eram os preferidos pela elite e a classe média de artistas, poetas e demais trabalhadores letrados. Já os maracatus, as congadas, o bumba-meu-boi e os fandangos davam o tom às diversões de negros, mestiços e migrantes da seca que habitavam as zonas sem calçamento e saneamento básico.


As batucadas nos finais de semana levavam o nome de sambas de areia ou forrobodós, por serem regadas a danças, bebidas e música. No entanto, essas festas eram, em grande parte, desmanchadas pelas autoridades policiais, com a justificativa de que causavam tumulto. O cronista Eduardo Campos aponta que, na falta de diversões, a população recorria também ao sereno, que era um ajuntamento popular em frente às casas em que se realizavam festas à noite.


A modinha foi um dos gêneros musicais mais democráticos, pois era apreciada por “moças de família”, donas de casa, bêbados e prostitutas. Grandes nomes da literatura cearense escreveram modinhas - Antônio Sales é o mais conhecido deles. Os modinheiros estavam ligados ao universo da noite e da boemia. A influência da vida boêmia, caracterizada pela despreocupação com relação a bens materiais e às convenções sociais, afetou também a forma de compositores de classe média a criar suas modinhas, projetando socialmente as camadas menos favorecidas sem o abuso do romantismo ufanista.


Raimundo Ramos (Ramos Cotoco), Carlos Severo e Carlos Teixeira Mendes (Teixeirinha) fizeram parte dessa corrente, enfatizando os problemas urbanos dos trabalhadores formais e informais, a exaltação do “populacho” e a ojeriza ao “burguês”, mas com um tom de jocosidade e pilhéria, típico do Ceará “moleque”. Teixeirinha cantou os problemas da seca do Ceará com comicidade. Em um de seus versos, diz: “O cearense tem nome e fama de denodado: na seca morre de fome, no inverno morre afogado”.


Ramos Cotoco zombou o apreço que as moças ricas tinham pela moda na sua composição “Modernismo”: “Môça de corpo mal feito/ Não existe, atualmente/ Graças aos quartos suposto/ Que dão forma tão decente/ E elas ‘inda’ são mais lindas porque/ Têm nanquim, Têm zarcão, Têm carmim/ E algodão/ Têm mil prendas/ Fingimentos / Da beleza /Monumentos”. O comportamento insubordinado, a crítica social e o escárnio dos valores e costumes ditados na época eram constâncias na vida de Ramos Cotoco.



Fica evidente que a cena musical de Fortaleza surgiu em meio a muitas disputas, mas os artistas cearenses trataram logo de diminuir o distanciamento social através de suas músicas irreverentes e cheias de malícia, tentando desaparecer com a ideia restrita, pejorativa e discriminatória atribuída aos mais pobres, considerados perigosos, com ausência de educação e sem julgamento morais.
O POVO - 21/01/214

Era uma vez a modinha...

Pesquisa mostra como a modinha, gênero musical que nasce junto com o processo de urbanização de Fortaleza, criou uma ponte entre ricos e pobres no século XIX.

Raimundo Ramos de Paula Filho (1871 – 1916) nunca gostou de ser chamado de Ramos “Cotoco”, apelido que lhe foi dado por causa de uma deficiência no braço direito. Apesar da insatisfação, a brincadeira tornou-se quase um sobrenome, e foi assim que ele ficou conhecido ao longo dos anos.



Artista plástico, compositor e boêmio incorrigível, Ramos “Cotoco” é um dos personagens mais importantes para se compreender uma Fortaleza de final do século XIX, ainda dando os primeiros passos para a urbanização. Bem humorado, Cotoco registrou os costumes de sua época em canções como “3%” e “Modernismo”. Como pintor, era mais sério. Assinou trabalhos importantes, como parte do interior do Theatro José de Alencar.

O jeito moleque e avant la lettre de Ramos Cotoco chamou a atenção da historiadora Ana Luiza Rios, que concluiu mestrado na Universidade Estadual do Ceará com a dissertação Entre o piano e a viola: a modinha e a cultura popular em Fortaleza (1988 – 1920). A pesquisa, que levou três anos, apresenta uma época em que a intelectualidade buscava entender a identidade nacional. Entre valsas, lundus e batuques, a modinha se destacou como um elemento agregador, que agradava diferentes classes sociais.


Segundo Ana Luiza, Ramos Cotoco fazia parte de um grupo de artistas que tirava elementos da rua para fazer sua música e poesia, o que era um contraponto ao modo mais formal de outros compositores, como Alberto Nepomuceno e Branca Rangel. “É interessante porque é o único gênero realmente democrático. Ele já com uma marca, por conta do Alberto Nepomuceno, de extrair o lundu do negro. É como se fosse um ritmo mestiço, que mistura a melodia do branco e o ritmo do negro. Ela já é a síntese do brasileiro”, explica a pesquisadora, acrescentando que a modinha nasce junto com o processo de urbanização de Fortaleza. “É o primeiro momento em que os compositores vão fazer coisas deles.”

O período compreendido na pesquisa de Ana Luiza Rios vai dos primeiros registros de modinhas fortalezenses (1888) até as últimas produções de Alberto Nepomuceno no gênero (1920). Nessa época, Fortaleza se transformava socialmente, com importantes obras urbanas, e culturalmente, com o surgimento da Padaria Espiritual (1892), do Instituto do Ceará (1887) e da Academia Cearense de Letras (1894).

Os artistas olhavam desconfiados para o que estava acontecendo e levavam suas ideias para a música. Ramos Cotoco, por exemplo, fez

“O bonde e as moças” para falar sobre a chegada desta novidade à cidade – “Conheço umas que moram aonde o bonde não passa, que dizem fazendo troça ‘esta rua é uma desgraça’”. “Ramos tinha um pé atrás com o processo, mas também não era totalmente contra”.



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Lá e cá

Ramos Cotoco era “um sujeito muito contraditório, que, ao mesmo tempo que critica os ricos, frequenta os lugares dos ricos”, conta Ana Luiza Rios, autora de dissertação sobre o poeta e músico cearense. O compositor acabou morrendo pobre, deixando como legado um livro (Cantares boêmios), suas pinturas e suas músicas.